Em fevereiro o Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses 2020 revelou que mais de metade da população portuguesa não lê livros. A estes dados somam-se os do estudo Práticas de Leitura dos Estudantes dos Ensinos Básico e Secundário que revelou que os jovens leem cada vez menos e que os hábitos das famílias influenciam a relação que têm com os livros. O que é que em Guimarães se tem feito para promover a leitura de miúdos e graúdos?
Todas as noites, antes de dormir, a mãe ou o pai do André contam-lhe uma história, um hábito criado desde que tinha cerca de um ano. Agora, prestes a fazer três, o filho de Carolina Pereira é uma criança interessada por livros que, por iniciativa própria, brinca com eles. “Pega em livros e inventa histórias ao folhear os mesmos e pede diversas vezes por dia para lhe contar historinhas”, revela a mãe.
O Lourenço tem sete anos e, desde que sabe ler, é ele quem lê todas as noites. “Isto desde os quatro mesinhos, ou seja os pais a ler. Mas também teve a fase, antes de aprender a ler por ele, em que lia os livros a inventar a história pelas imagens. Essa fase é tão fixe”, recorda a mãe, Sónia Carvalho. Além do hábito de ler sempre à noite, também lê, de vez em quando, por ele e nunca se esquece de “requisitar um livro na biblioteca da escola que fica em casa por 15 dias”: “Adora isso. Fica sempre contente por trazer mais uma história nova e já tem uma lista dos próximos livros que gostava de trazer”, diz a mãe do Lourenço.
O Serviço de Apoio às Bibliotecas Escolares (SABE) foi criado em 1996 no âmbito do Programa Rede de Bibliotecas Escolares lançado pelos Ministérios da Educação e Cultura com o principal objetivo, conforme explica a técnica superior da Biblioteca Municipal Raul Brandão, Ivone Gonçalves, de “ instalar e desenvolver bibliotecas e serviços de biblioteca nas escolas”. “O SABE foi encarado desde o início como fundamental, uma vez que as bibliotecas escolares foram sempre assumidas como estruturas essenciais dentro das escolas capazes de desenvolver nos alunos as competências ao nível da aprendizagem, da literacia e das tecnologias de informação”, refere a também coordenadora do eixo Cultura, Lazer e Desporto do plano local do programa Guimarães, Cidade Amiga das Crianças. “Através da Biblioteca Municipal Raul Brandão e do SABE as escolas beneficiam de condições especiais de empréstimo de fundos documentais e de atividades específicas no domínio da promoção do livro e da leitura e da formação nestas áreas”, remata Ivone Gonçalves.
A criação do SABE permitiu criar uma estrutura capaz de garantir um desenvolvimento sustentado de toda a rede concelhia de bibliotecas escolares, garantindo por outro lado que fosse sempre feito um verdadeiro trabalho em rede, com trabalho articulado, potenciando recursos através da colaboração e cooperação entre todos.
A constituição do Catálogo Coletivo Concelhio tem sido, nos últimos anos, um grande investimento por parte da Biblioteca Municipal Raul Brandão afetando a este projeto dois técnicos com formação específica em quase permanência exclusivo o que permitiu até este momento a introdução na base de dados bibliográfica um total de cerca de 170.000 documentos.
Filipe Moreira, há quatro anos a viver na Noruega, levou com ele os hábitos de leitura criados “desde sempre” na hora de adormecer a filha Maria, com seis anos, e agora o Gabriel com cinco meses. “Às vezes uso a leitura para adormecer o meu filho mais novo. O mesmo aconteceu com a minha filha mais velha, por isso, não consigo dizer a partir de que idade começámos a ler-lhe antes de dormir. É um hábito solidificado na nossa rotina diária”, garante.
A Maria é uma criança interessada por livros e sempre teve o desejo de aprender a ler e sempre teve a liberdade de manusear livros, conforme quisesse. “Agora que está a aprender a ler, tenta fazê-lo com os livros que temos em casa e, de forma livre, ora explora os livros em português, ora em norueguês. Também gosta muito de ir a bibliotecas e é ela própria quem sugere essa atividade para o fim-de-semana”, conta o pai. “Na escola também é incentivada a frequentar a biblioteca para implementar o hábito de requisitar livros, lê-los e devolvê-los dentro do prazo”, acrescenta Filipe Moreira.
O município de Guimarães dedica este mês, que anuncia a primavera, à promoção da leitura. Na apresentação das várias iniciativas programadas, assentes na realização do Húmus – Festival Literário de Guimarães que decorreu de 7 a 12 de março, a vereadora da Educação da Câmara Municipal de Guimarães, Adelina Pinto, revelou que, em parceria com a Universidade do Minho, se está a definir um Plano Local de Leitura (PLL). “Este novo PLL vem para valorizar e acrescentar aos projetos de educação que já temos em Guimarães. Pretendemos fomentar a leitura e acrescentar a participação, com o envolvimento da comunidade, dos escritores, dos artistas, das associações e das escolas”, referiu por ocasião da apresentação do programa do 30.º aniversário da Biblioteca Municipal Raul Brandão.
Integrado na segunda fase de desenvolvimento do Plano Nacional de Leitura (PNL) esta iniciativa tem como finalidade garantir a participação das autarquias numa política articulada de promoção da leitura e de melhoria das competências de literacia. “O Plano Local de Leitura de Guimarães ‘Ler é Património’ agora apresentado, e da responsabilidade do município de Guimarães através da Biblioteca Municipal Raul Brandão, apresenta um plano global onde os vários atores culturais, educativos e sociais são envolvidos com vista a uma política integrada de leitura”, começa por explicar Ivone Gonçalves.
A mobilização dos parceiros, a promoção do trabalho colaborativo e a potenciação dos meios já existentes é essencial para o cumprimento das áreas de foco do PLL: valorização de todas as literacias, o alargamento de públicos, o incentivo à escrita, o reforço da leitura por prazer, a colocação da leitura e da escrita no centro de contextos de aprendizagem, a aproximação da população à literatura, ciências, artes e tecnologias.
Além de mapear os projetos de promoção da leitura que os diferentes intervenientes locais já estão a desenvolver, a primeira fase de atuação do PLL pretende conhecer o perfil do leitor dos vimaranenses. “Este mapeamento permitirá, não apenas coletar informação pertinente acerca do comportamento leitor, como igualmente possibilitará reflexões sustentadas em dados objetivos para a tomada de decisões, capazes de orientar as políticas públicas e ações para melhorar os indicadores de leitura e de acesso ao livro e às literacias”, explica Ivone Gonçalves.
Esta proposta vai, certamente, tentar combater os resultados dos últimos estudos realizados sobre os hábitos de leitura, tanto dos adultos como das crianças portugueses.
O Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa analisou as Práticas Culturais dos Portugueses e, no que respeita aos hábitos de leitura, nos últimos 12 meses anteriores ao inquérito, 61% das pessoas não leram um único livro em papel, e, das 39% que afirmavam ter lido, a maioria leu pouco.
Por sua vez, os resultados da primeira parte do estudo Práticas de Leitura dos Estudantes dos Ensinos Básico e Secundário, apresentados em setembro de 2020, revelaram que a maioria dos 7.469 alunos inquiridos admitiu ter lido menos de três livros por prazer nos 12 meses anteriores ao inquérito.
Este estudo do Plano Nacional de Leitura e do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Iscte - Instituto Universitário de Lisboa concluiu que os alunos do 3.º ciclo e ensino secundário leem cada vez menos e que o gosto pela leitura perde-se à medida que a idade avança.
Gabriela é exemplo desta tendência. Quando era bebé, desde, talvez, os três meses até aos cinco anos, tinha o hábito de ler uma história antes de dormir. “Entretanto, confesso que esse hábito se perdeu”, lembra a mãe, Andrea Fernandes. “Talvez por causa disso, ela tenha perdido o interesse por livros. O interesse dela por livros não é muito e é associado a uma obrigação, na maior parte das vezes”, admite. Foi graças à atividade “10 minutos a ler” que Gabriela retomou o contacto com os livros por volta dos dez anos. “Começou a ser ‘obrigada’ a ler mais. Para além disso, é extremamente condicionado pelos gostos dela. No entanto, tem agora o hábito, de ter sempre com ela um livro, sem qualquer objetivo escolar”, revela a mãe.
Esta iniciativa do Plano Nacional de Leitura pretende estimular a criação de uma rotina de leitura porque só o contacto com os livros vai permitir o desenvolvimento do gosto de ler, a consolidação dos hábitos leitores e o aumento das competências de literacia. Esta estratégia de promoção da leitura, tendo em consideração os resultados da segunda parte do estudo Práticas de Leitura dos Estudantes, respeitantes ao 1.º e 2.º ciclos, deve estar a resultar.
O estudo, apresentado em dezembro, revelou que mais de 80% das crianças do 3.º e 4.º anos e 70% do 2.º ciclo afirmaram gostar ou gostar muito de ler, só pouco mais de 3% disseram não ter lido nenhum livro nos últimos 12 meses e mais de 50% estava a ler algum livro aquando da aplicação do questionário.
Este estudo aponta que a influência da família e da escola é determinante: 90% das crianças inquiridas respondeu que lhes dizem que é importante ler livros, referiu a prática pelo professor da leitura em voz alta nas salas de aula e disse já ter usado a biblioteca escolar.
Voltando ao inquérito sobre Práticas Culturais dos Portugueses, as conclusões apontam igualmente para a existência de uma relação entre a educação e os hábitos de leitura, visto que a maioria dos adultos inquiridos assumiu que na respetiva infância e adolescência não sentiram estímulos à leitura gerados em contexto familiar. De acordo com os dados divulgados, a grande maioria dos inquiridos assume que os pais nunca os levaram a uma livraria (71%), a uma feira do livro (75%) ou a uma biblioteca (77%).
A mãe da Gabriela, ao contrário da filha, sempre gostou muito de ler e sempre o fez por iniciativa própria até, por volta, dos 30 anos. “Entretanto, devido a vários fatores, é um hábito mais raro. Há cerca de um mês, comecei a ler à Gabriela, antes de dormir, o Mundo de Sofia, como uma leve introdução à filosofia, já que, em princípio, ela terá a disciplina para o ano”. A mãe quer tentar fomentar algumas noções sobre a matéria, porque sabe que, por iniciativa própria, ela não o fará. “Não tem interesse, por esse tipo de literatura”, diz.
Filipe Moreira começou a explorar os livros quando aprendeu a ler. “Os meus pais não me liam enquanto criança mas sempre me proporcionaram o acesso aos livros. Desenvolvi o hábito de leitura que mantenho até hoje. Maria tem pais leitores, não tanto como gostariam e talvez este contexto ajude a torná-la uma adulta leitora. “Lemos porque são momentos felizes e recompensadores em família. Fazer dela uma leitora assídua não é o objetivo desta prática mas é possível que seja uma consequência positiva”, refere.
Carolina Pereira desde que tem memória lia sempre antes de adormecer e ouvia música no gira-discos. Também agora, enquanto adulta, lê menos do que gostaria e não tem dúvidas que o exemplo dos pais vai estimular os hábitos de leitura do André. “Não tenho dúvidas que vai ajudar, poderá ser ou não leitor assíduo. O contrário, pelo que percebo, é que é difícil, adquirir bons hábitos de leitura apenas em adulto, o mesmo se aplica relativamente a fazer exercício físico”, compara.
O pai do Lourenço raramente lê e a mãe tem livros ‘qb’ em casa mas passou a ler menos depois do filho nascer. “Hoje em dia leio mais em formato digital mas continuo sempre a ter livros junto à cama, à espera de serem lidos. Tenho dois de momento [risos]”, refere Sónia Carvalho. “Acredito que o hábito incutido desde pequeno será um grande passo para o Lourenço continuar a ser um leitor assíduo e ter gosto nos livros. Acho que é algo que vem mesmo dos hábitos de criança. Eu sempre gostei de livros em pequenina, chegava a amealhar a semanada para comprar alguns e acredito que é um excelente hábito e que realmente fiz questão e gosto de o incutir ao nosso pequeno. Se realmente se irá refletir na realidade? Ainda não tenho experiência ainda é pequenito, conclui.
“Acredito que uma criança ver que as pessoas à volta dela têm esse hábito de leitura aumenta a probabilidade de se tornar um leitor assíduo. Mas, a própria personalidade tem também influência nisso”, considera Andrea Fernandes.
Covid-19: Fica em casa… e lê
O estudo desenvolvido pelo Plano Nacional de Leitura e pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL demonstrou ainda que os alunos leram mais livros durante os períodos de confinamento. E para ajudar a estimular o aumento dos hábitos de leitura provocado pela pandemia de covid-19, em fevereiro de 2021 foi lançado pelo Lions Clube de Guimarães e a câmara municipal de Guimarães a campanha “Doa um Livro”. A comunidade vimaranense foi convidada a doar livros que mais tarde foram entregues às crianças socialmente mais vulneráveis. Desta forma, os livros foram entregues às crianças juntamente com as refeições que eram distribuídas nas escolas para, simbolicamente, reforçar a ideia da importância de alimentar o corpo mas também o espírito.
A relação dos familiares com os livros, alargamento da escolaridade obrigatória e utilização "sem precedentes" da tecnologia explicam quebra dos hábitos de leitura.