Margarida Fernandes planeou deixar o filho com os avós até aos três anos por acreditar nos benefícios dos mimos da família – até porque estes avós já tinham sido “testados” e “super aprovados” pelos primos que são presença assídua na mesma casa – mas também para evitar dificuldades a nível profissional e empurrar para longe as viroses, gripes e constipações… Agora, a menos de um mês da entrada do João (nome fictício) na “escolinha”, admite estar cheia de dúvidas e angústias…
“Pensava e penso muito, se calhar erradamente porque até não tenho razão de queixa da minha entidade empregadora, e se o miúdo vem para casa doente muitas vezes ou se me atraso no trabalho uma vez atrás de outra? Com os meus pais, está seguro, protegido, feliz a passear e a brincar”, descreve esta mãe de um menino com quase três anos.
“Mas nada, absolutamente nada, contra as creches e amas. Têm um trabalho incrível que respeito muito, que acompanhei nos relatos de amigas e como tia e agora estou muito ansiosa por conhecer na primeira pessoa”, acrescenta.
De acordo com a Porto Editora, “ansiedade” é “um estado de perturbação psicológica causado pela perceção de um perigo ou pela iminência de um acontecimento desagradável ou que se receia”, também significa “opressão” e “angústia”.
Ultrapassada a “barreira mental”, como a própria diz, relacionada com o medo das viroses e gripes, Margarida não se revê na parte relacionada com o “perigo”, mas sente-se totalmente enquadrada na descrição do dicionário em relação à “angústia”.
“Acho que nunca me senti tão angustiada desde que o João nasceu [há quase três anos]. Vivo um misto de sensações, quero que vá, quero lançá-lo, mas tenho muito medo, medo que sofra, medo que sinta muito a ausência da família”, conta, confessando que numa reunião recente com a futura educadora do filho esta lhe perguntou sem rodeios “tem medo por ele ou por si?”.
“Foi uma pergunta totalmente legítima e adequada. Tenho pensado muito nela”, confessa.
O João esteve com os avós até ter cerca de um ano e meio. Um evento familiar e a ausência de vagas nas creches fez com que Margarida mantivesse o plano de o ter em casa até aos três, mas reinventando os moldes da opção. Ativou o direito ao teletrabalho e passou a fazer um ‘tetris’ com os horários do marido e os seus.
“Portanto, a pergunta real e que admito que tenha de ser eu a responder é? É o João que está dependente de mim ou sou eu que estou dele?”, questiona.
Vanessa Moutinho, investigadora do ProChild CoLAB, uma associação privada sem fins lucrativos que trabalha a área da pobreza e exclusão social na infância, através de uma abordagem científica transdisciplinar, diversificada, integrada, que articula os setores público e privado na promoção do bem-estar e dos direitos das crianças, conhece bem estas angustias e questões.
Em entrevista ao programa “Cidade Amiga das Crianças” do Município de Guimarães, fala daquilo que é, na maioria dos casos, a primeira grande transição no ciclo de vida de uma criança, a transição da família para a creche que, diz, “pode ser um processo complexo e emocionalmente intenso para todos: crianças, famílias e profissionais de creche”.
“Para os pais é, naturalmente, expectável que se sintam ansiosos, e que surja um conjunto de sentimentos como medo, preocupação, ou até mesmo culpa e tristeza. Esses sentimentos são naturais e esse é o momento para permitir que sejam sentidos. De alguma forma refletem que os pais se preocupam com o bem-estar da criança, e que confiar o cuidado da criança a outra pessoa pode representar um desafio emocional intenso, especialmente se for a primeira vez que a criança passa longos períodos longe dos pais”, reflete Vanessa Moutinho.
A investigadora recorda que muitos pais também estão num processo de adaptação, e que para muitas famílias, a entrada da criança na creche, representa o regresso ao trabalho após um período significativo de tempo.
“No entanto, o normal é que a tranquilidade se vá instalando gradualmente à medida que ambos, pais e criança, se adaptam às novas rotinas e desenvolvem uma relação de confiança com a equipa de creche”, tranquiliza.
Vanessa Moutinho aconselha os pais a encarar a entrada dos filhos na creche “como um processo normativo” e que quando questionam se será a escolha certa ou ideal, lembrar que estão a fazer o que naquele momento responde às necessidades da família.
“O investimento deve ser então feito na escolha de uma creche de qualidade, e a esse respeito há uma série de indicadores que podem ser observados desde o primeiro contacto entre os pais e a instituição, entre os quais, de que forma a própria creche vê a transição e apresenta as suas práticas de transição”, desenvolve.
Foi isso também que travou Margarida de avançar, há um ano e meio quando a vida familiar mudou de forma inesperada e devido a episódios de saúde dos avós, para creches ou amas. Confiando nessas opções, queria procurar e ter tempo para escolher. “Confesso que quando me respondiam: ‘não há vagas’ ou ‘as inscrições foram no mês passado’, sentia algum alívio. As minhas amigas e os meus chefes que não leiam isto”, brinca.
Agora está a contar os dias para o ingresso do João num colégio onde andou em criança e onde estiveram os sobrinhos, uma realidade que não é a sua primeira escolha porque é fruto de outra situação inesperada – mudança de cidade – mas com a qual se sente confortável e confiante.
Questionada sobre quais os passos mais importantes que os pais devem dar para preparar a entrada na escola, a investigadora do ProChild CoLAB diz que “no cenário ideal, o primeiro passo é a escolha da creche tendo em conta indicadores de qualidade”. “Nos primeiros contactos, esses indicadores passam pela forma como acolhe a iniciativa de contacto dos pais, se mostra disponibilidade para falar com eles e em esclarecer as suas dúvidas, e isto acontece desde o primeiro telefonema. Outro aspeto a ter em conta é se a creche permite a visita, lembrando que a visita deve ocorrer durante o período de funcionamento da creche possibilitando observar adultos e crianças na sua rotina habitual”.
Estas são, considera Vanessa Moutinho, “boas práticas no acolhimento e transição” que passam também por fomentar a presença das famílias. É todo um mar de aspetos importantes: desde o número de adultos que compõem a equipa de sala, tendo em conta o tamanho do grupo, a forma como são geridos os comportamentos desafiantes, a forma como é promovida a autonomia e a consideração das opiniões das crianças.
“Sabemos que face ao cenário atual, onde há muita procura de lugares em creche e uma oferta limitada, a escolha não permite assegurar muitas das características que descrevemos. Contudo, pais informados e envolvidos podem ser também o motor de algumas mudanças, mostrando o seu interesse e intenção de participar e se envolverem ativamente na creche”, acrescenta.
Vanessa Moitinho também destaca a importância de promover uma comunicação aberta e frequente com a educadora e a auxiliar, mostrar interesse em falar sobre o desenvolvimento e bem-estar do seu filho, mostrar interesse sobre as atividades que são desenvolvidas, ser proativo e voluntariar-se para participar nas atividades da creche e procurar entender melhor as práticas e políticas da creche e sugerir melhorias de forma construtiva, baseando-se numa relação de confiança e apoio com a equipa educativa.
Já sobre que estratégias recomenda para ajudar a criança a adaptar-se à nova rotina da escola, Vanessa Moutinho aborda os papéis de todos os incluídos neste processo, incluindo o dos profissionais.
“Do ponto de vista dos profissionais, começar pelo planeamento da transição para a creche de forma intencional, nomeadamente, como um momento que é incluído desde logo no plano pedagógico. Em termos mais concretos, podemos pensar em ações a ter em conta antes da entrada efetiva da criança na creche, e naquelas que acontecem durante as primeiras semanas”, diz.
Resumindo: “É fundamental conhecer a família e a criança antes do dia da entrada para a creche”.
A investigadora aconselha um encontro no qual o profissional de creche conhece aquela criança e aquela família na sua singularidade. Este contacto que, admite, “envolve entrar na intimidade da família, deve ser feito com respeito e valorizando aquilo que cada família traz consigo – tendo presente que os pais são os maiores especialistas sobre os seus filhos e têm informações fundamentais a partilhar”.
“É um momento importante para construir uma relação de confiança com a família, para mostrar que são bem-vindos na creche e que os profissionais contam com eles e que valorizam a informação por eles partilhada. É também um momento para os profissionais fornecerem informação relevante sobre o funcionamento da instituição, das rotinas, procedimentos e esclarecerem dúvidas a este respeito. Nesta fase, os profissionais devem sensibilizar os pais para a importância da transição gradual, ou seja, recomendando o aumento gradual da permanência da criança na creche e acordar com eles a melhor forma de o fazer. Igualmente, convidar a família a conhecer a sala e, se possível, os adultos que irão acompanhar a criança no grupo, são boas práticas a considerar”, descreve.
Margarida Fernandes já conheceu a sala onde o filho vai passar algumas horas do seu dia a partir de setembro. Conheceu e gostou, mas não evitou verter uma lágrima quando anunciaram o calendário escolar e lhe deram dicas sobre os primeiros dias.
Perguntei: “Devo vir eu sozinha ou o meu marido sozinho ou os dois e responderam ‘siga o seu coração mãe’. Gostei muito, mas fiquei logo angustiada de novo. O meu coração diz que o João tem de ir para a escola, que isso vai ser ótimo para ele e para nós, pais, mas, correndo o risco de me repetir, tenho medo que sofra muito”.
Por isso é que outra coisa de que Margarida gostou foi de saber que o colégio para onde vai o João promove uma integração progressiva, algo que vai ao encontro das recomendações da investigadora do ProChild CoLAB.
“Dado que os primeiros dias parecem ser os mais exigentes, a redução do tempo em creche e o aumento do número de dias com a presença dos pais se necessário, pode facilitar a familiarização da criança e pode ajudar a manter o stress mais balanceado. Estas decisões devem ser tomadas caso a caso e avaliando a necessidade individual de cada criança, assim como, deve ser dado suporte aos pais nestes momentos que incluem a sua presença na sala ou noutro espaço da creche, para que seja um momento prazeroso e bem-sucedido, com benefício para todos e minimizando o impacto negativo na dinâmica da creche”, refere.
E sendo que este é um processo que não se esgota nos primeiros dias, Vanessa Moutinho aconselha outros aspetos… “Após a entrada da criança na creche, e durante as primeiras semanas, é importante permitir que a família tenha a oportunidade de entrar em contacto para saber como está a criança. É igualmente importante o cuidado de enviar diariamente para a família informação sobre a forma como está a decorrer a adaptação. Convidar a família a passar algum tempo na sala, com a criança tem sido apontado como uma prática de elevada qualidade”, apontou.
Mas e se esta abordagem em sala não for possível? “Se não for possível que estes momentos entre a criança, os pais e os profissionais de creche aconteçam no espaço da sala, ser criativo e procurar um espaço na creche onde seja viável fazê-lo é uma alternativa a considerar. O essencial é garantir a construção de uma relação de segurança entre a criança e este novo adulto, que sabemos ser facilitada pela presença dos pais”, responde a investigadora.
Segundo Vanessa Moutinho, “a investigação mostra que a presença pode diminuir o impacto do stress induzido pelo novo contexto, e que as crianças podem apresentar uma maior capacidade de explorar o ambiente e interagir com os novos cuidadores na presença da sua figura de referência, que isso a pode ajudar a regular melhor as suas emoções e a construir pontes entre os dois contextos”.
A investigação também mostra, continua Vanessa Moutinho, que o envolvimento da família em contextos de educação de infância está associado mais tarde a melhores resultados no desempenho académico e no desenvolvimento sócio emocional das crianças.
“O sucesso deste envolvimento depende da responsabilidade de ambos – pais e profissionais – em se estabelecerem como uma parceria de suporte. Haver o compromisso conjunto de criar um diálogo aberto, contínuo e bidirecional, entre a família e os/as profissionais é fundamental. As/os profissionais têm um importante papel nesta questão, pois podem reforçar a importância do envolvimento dos pais no desenvolvimento e aprendizagem das crianças”, conclui.
Margarida não sabe como vai correr o processo de adaptação do João – e o seu, o do marido e até dos avós que continuam muito envolvidos no dia a dia do neto – mas uma coisa está a implementar, o tal diálogo. Para já sobretudo com o filho…
“Depois das férias vais para a escolinha… Vais fazer tantos amiguinhos novos… Aprender tantas coisas novas e bonitas… É a escolinha dos primos, não queres ver os primos e ter uma mochilinha linda como os primos?”, diz-lhe. “E vais (vamos) ser feliz filho!”, repete, confiante.
DICAS PARA OS PAIS
. Devem investir numa relação de confiança e abertura com os profissionais de creche, expondo as suas dúvidas, fazendo questões e procurando estar informados sobre o dia-a-dia do seu filho na creche:
. Devem fortalecer a rede de suporte, no seio da família, mas também tentando construi-la no contexto da creche, nomeadamente, com os outros pais;
. Sintam-se legitimados pelos sentimentos de ansiedade, medo e preocupação, frequentes nesta fase, e não se censurarem por isso;
. Devem ter presente que cada criança tem um ritmo próprio de adaptação e que para algumas crianças pode demorar poucos dias e para outros algumas semanas, até se sentirem mais seguras e adaptadas;
. Vale a pena lembrar que se sentirem uma grande ansiedade e desconforto, com impacto no seu bem-estar pode ser aconselhado procurar outro tipo de ajuda especializada.
CERTO OU ERRADO?
“Olha o passarinho ali… Fuja pai que ele não está a ver…”
Pedimos à investigadora da ProChild CoLAB para nos falar dos mitos e estratégias associados ao momento de deixar uma criança na creche… Vanessa Moutinho considera importante “assegurar que a família se despede da criança e não sai sem esta dar conta é fundamental” e, por isso, lança a pergunta: “Pensemos o que acontece quando caímos na tentação de usar expressões como ‘vá embora agora mãe, que ele nem nota’ ou ‘olha o passarinho ali’, distraindo a criança para a saída do pai. O que estamos a cultivar?”.
A resposta é clara: “Um sentimento de insegurança e imprevisibilidade, fortalecendo na criança a noção de total falta de controlo sobre os acontecimentos”.
E que oportunidade perdemos? “A oportunidade de nos colocarmos no lugar da criança e responder de forma sensível aos seus sinais de desconforto, que sabemos ser fundamental para o estabelecimento de uma relação de confiança e segura entre a criança e os adultos da sala”. Pense nisso!
Também são dicas a ter em conta: identificar a(o) profissional de referência para a criança, que pode facilitar a continuidade dos cuidados de forma mais individualizada ou garantir o acesso a fotos da família de cada criança na sala e partilhar informação com a família diariamente sobre a forma como está a adaptação da criança, devem também ser considerados.
3 PERGUNTAS DIRETAS
Guimarães, Cidade Amiga das Crianças (GCAC) - Quais os sinais que indicam que a criança se está a adaptar bem ou que pode precisar de mais apoio?
Vanessa Moutinho (VM) - Todos os planos de transição devem ser flexíveis e sensíveis as necessidades de cada momento, de cada família e de cada criança. Devemos estar atentos aos sinais de envolvimento, bem-estar da criança e da sua interação com os pares e os adultos nos vários momentos do dia, bem como observar o comportamento da criança no momento da despedida da família, ao longo dos dias e perceber como evoluiu. Por outro lado, devemos comunicar continuamente com a família de forma a perceber se há alterações nos indicadores de bem-estar da criança (e.g., níveis de irritabilidade, padrão de sono, alimentação). Estes mesmos indicadores devem ser observados pelos profissionais no dia-a-dia da creche, pois podem indicar que determinada criança e/ou família podem necessitar de apoio acrescido.
GCAC - Como é que as creches devem lidar com as necessidades individuais, especialmente com aquelas com necessidades específicas?
VM - Relativamente ao processo de transição em concreto, as práticas recomendadas são as mesmas, já que devem em todos os casos adaptar-se às necessidades particulares de casa criança e família. Em termos gerais, sabemos que a qualidade das interações com as crianças com necessidades específicas tende a ser mais baixa, comparativamente com as outras crianças, e esse dado deve deixar-nos alerta. É importante desde logo considerar o estabelecimento de relações colaborativas com outros profissionais que já acompanham a criança e a família, nomeadamente pediatra, terapeutas, equipas de Intervenção Precoce (as chamadas ELI - Equipas Locais de Intervenção). Se a família partilhar estas informações previamente, todos os envolvidos terão a ganhar com contactos prévios entre si, no sentido de conhecer o perfil da criança e ajustar a resposta dos adultos na creche, desde o início.
GCAC - Como deve ser o ambiente da creche para apoiar o desenvolvimento das crianças?
VM - Não existem aprendizagens significativas sem relações significativas e por isso um ambiente de creche que privilegie o estabelecimento de relações seguras, carinhosas, respeitadoras, que têm em conta a criança e que valorizam a sua opinião, é um modelo a seguir. Por outro lado, um ambiente estimulante, onde aprender se torna quase inevitável é igualmente fundamental, caracterizadas por práticas educativas intencionais, que criam oportunidades para expandir a experiências e a comunicação das crianças, e onde os adultos têm um papel muito importante.