As férias escolares já começaram e este período representa uma dor de cabeça para os pais e as famílias: querem proporcionar tempo de qualidade aos filhos mas não sabem, muitas vezes, como escolher. A oferta é diversificada, quer do ponto de vista das atividades, quer em termos dos custos associados. Os cenários são muitos mas o programa “Guimarães, Cidade Amiga das Crianças” foi tentar perceber o papel da brincadeira livre na vida das crianças e de que forma os centros de atividades ocupacionais lidam com estes momentos e, até, os incentivam.
Brincar livremente é a melhor forma das crianças aprenderem, explorarem o mundo e expressarem-se. “Penso que brincar livremente é estar em liberdade. É ter várias possibilidades e perspetivas de imaginar e criar, sem grandes objetivos ou regras. É serem as crianças a concretizarem as suas brincadeiras, sem intervenções desnecessárias por parte de pessoas adultas”, referiu a técnica superior de serviço social no projeto Porta 7 E9G, da Fraterna, Mariana Costa.
Mas as brincadeiras das crianças têm-se tornado cada vez menos livres e mais orientadas, e existe uma tendência crescente para envolver os mais novos em contextos de atividades estruturadas. “Em português as palavras mais usadas para se referir à “brincadeira” são os verbos brincar e jogar, sendo que há diferenças entre os dois que nos podem ajudar a explicar a ideia de brincadeira livre”, refere a diretora técnica e psicóloga da delegação de Guimarães da Associação de Solidariedade Social dos Professores (ASSP), Virgínia Martins. “Brincar indica atividade lúdica não estruturada e jogar remete-nos para atividade que envolve regras especificadas”, completa.
Estas brincadeiras voluntárias e prazerosas começam a ser raras no dia-a-dia dos mais novos. Por um lado, o tempo livre é cada vez menor por causa da rotina semanal preenchida por aulas e atividades extracurriculares, mas por outro lado, porque as tecnologias começam a ocupar cada vez mais espaço nas respetivas vidas.
Virgínia Martins aponta que houve um aumento exponencial do tempo passado em atividades de lazer passivas. “Aliás, li recentemente num estudo, que nas últimas duas décadas, as crianças perderam cerca de 12 horas de brincadeira livre por semana”, começa por dizer. “Ao contrário do antigamente, onde a brincadeira livre acontecia naturalmente, nos recreios, na rua, nos dias de hoje, o tempo das crianças está cada vez mais ocupado com atividades enriquecedoras e com jogos e é preciso pensar sobre isto”, refere Virgínia Martins.
A liberdade de movimento, a criatividade, a autonomia e a confiança são algumas das habilidades que Mariana Costa enumera para explicar os benefícios das brincadeiras livres. “É notória a forma como as crianças conseguem facilmente sociabilizarem entre pares e, inclusivamente, encontrarem juntas estratégias para questões que possam surgir”, refere sublinhando que para que isto aconteça é necessários evitar “intervenções desnecessárias” porque “grande parte das vezes, as crianças conseguem encontrar as suas próprias estratégias”. “O nosso colo pode ser só o espaço seguro onde, também por vezes, precisam de recorrer”, realça.
Brincar é crucial para a saúde física, intelectual, social e emocional em todas as idades. A nível sócio emocional, promove a capacidade de saber lidar e interagir com os outros e com o mundo, a lidar com sentimentos, a comunicar, a tornarem-se crianças mais resilientes e com maior capacidade de autorregulação. A nível cognitivo, brincar cria diversas oportunidades para potenciar a capacidade de resolver problemas, de tomar decisões, de planear e organizar. Ao nível físico e motor, além dos óbvios benefícios para a saúde, considerando, as consequências do sedentarismo, também promove o desenvolvimento de competências motoras.Virgínia Martins enumera autores como Lev Vygotsky, Maria Montessori e Peter Gray para sustentar esta opinião de que a brincadeira livre é crucial para o desenvolvimento infantil, em todas as suas dimensões, destacando o alerta do investigador norte-americano que se dedica a estas questões do brincar, David Elkind: “eliminar a brincadeira livre ou programar toda a vida das crianças com atividades organizadas leva a elevados riscos futuros para a sua saúde, sucesso e felicidade”.
“Há muitos especialistas que defendem que o tédio desempenha um papel crucial no desenvolvimento das crianças. Algumas das razões apresentadas focam que estimula a criatividade e a autonomia, porque sou obrigado a tomar iniciativa de inventar algo para fazer e resolver a falta de ocupação, o que se associa também à reflexão. Por outro lado, também pode fomentar a resiliência, no sentido em que tenho de lidar e regular a frustração. Pode haver uma resistência difícil inicial da criança e tentativa de se refugiar nas distrações típicas de hoje (tecnologias), mas na ausência desta possibilidade, e com paciência e confiança do adulto, a criança acaba por explorar o seu ambiente e inventar novas brincadeiras, aproveitando os recursos disponíveis. Isto pode levar a uma menor dependência de estímulos externos, como os dispositivos eletrónicos, para obter gratificação e diversão”. Virgínia Martins
O protagonismo da brincadeira livre começa a diminuir também porque os pais, as escolas e os centros de atividades ocupacionais sentem-se pressionados a apresentarem programas de atividades orientadas.
Os pais estão a pensar no melhor para os seus filhos, mas qualquer que seja a decisão deles sobre este assunto, são, muitas vezes, alvo de critica e de pressão social, o que não é fácil de gerir. “Há uma voz interior que diz ‘se não der ao meu filho a oportunidade de praticar algumas destas atividades, então não estou a investir no seu futuro, não estou a proporcionar oportunidades para crescer, para atingir o seu potencial, ou simplesmente, porque é o único que não faz nada’, admite a psicóloga Virgínia Martins.
Os pais, muitas vezes, estão a trabalhar e não têm retaguarda familiar viável por parte dos avós, mas, como se não bastasse, existe ainda uma grande pressão financeira visto que muitas das opções de ocupação de tempos livres e programas especiais, podem ser dispendiosas.
Ainda assim, a diretora técnica da ASSP que, desenvolve Programas de Ocupação de Tempos Livres desde 2012, recorre a David Elkind para alertar os pais que as decisões que tomam sobre o tempo livre dos filhos são, na maioria, assentes nos próprios medos e inseguranças.
Mas Virgínia Martins diz que também a ASSP, enquanto instituição, sofre pressões sociais em relação a este tema. “Um programa recheado de atividades diferenciadas e estruturadas é, à partida, mais apelativo para os pais e garante de maior participação”, adianta. “Curiosamente, já fizemos algumas avaliações via questionário anónimo aos participantes, sobre as atividades preferidas, e o “dia livre” costuma ficar no pódio”, acrescenta.
É por este motivo e pela importância atribuída ao brincar que a ASSP procura na rotina diária, incluir momentos não estruturados, com menos intervenção do adulto, que garantam o acesso a essa brincadeira livre, limitando, sempre que possível, o recurso às tecnologias e forçando o surgimento de outras iniciativas. “Mas importa dizer que, quando estão verdadeiramente conectados uns com os outros em brincadeira, a tecnologia não tem espaço, algo a que é muito satisfatório de assistir. A brincadeira tem um papel central nas amizades e, consequentemente, uma melhor integração social”, sublinha.
O projeto Porta 7 desenvolve várias atividades quer em período letivo, quer em período não letivo focadas no desenvolvimento de competências sociais, facilitadoras do sucesso escolar, digitais, artísticas, culturais, desportivas, de cidadania e participação ativa.
Este projeto de intervenção social financiado pelo Escolhas, um programa governamental de âmbito nacional, criado em 2001, promovido pela Presidência do Conselho de Ministros e integrado até agora no Alto Comissariado para as Migrações, trabalha com crianças e jovens de contextos socioeconómicos vulneráveis, envolvendo-os na decisão do calendário de atividades a desenvolver para tentar procurar interesses que coincidam. “A par disto, também tentamos proporcionar experiências às crianças e jovens que, de outra forma, possivelmente não teriam”, acrescenta Mariana Costa.
O equilíbrio entre atividades que vão ao encontro daquilo que gostam de fazer e a apresentação de novas perspetivas à procura da ocupação de mais e novos espaços públicos faz-se, tentando sempre dar lugar à brincadeira livre tanto no espaço da Atouguia como no de Gondar. “As crianças e jovens fazem parte do processo de reflexão, da partilha dos espaços e de algumas tarefas, inclusive. Tentamos que brinquem e que se relacionam em liberdade. Trabalhamos para que os nossos espaços sejam espaços seguros, livres, democráticos e com relações horizontais”, revela a técnica superior de serviço social no Porta 7 E9G.
A importância da brincadeira na intervenção do Porta 7 E9G tem um papel fundamental que culminou, pelo 3.º no consecutivo, na celebração do Dia Internacional do Brincar. “Chamamos-lhe "Habitar o Brincar" e fazemo-lo em parceria com o ProChild CoLAB que, inclusive, é uma das nossas entidades parceiras”, explica Mariana Costa. Esta iniciativa este ano, realizou-se na EB1/JI de Gondar e contou com diversas oficinas, uma hora do conto e um concerto. Foi um dia partilhado entre crianças, jovens, famílias e comunidade.
Virgínia Martins termina, deixando um desafio de reflexão para os adultos pensarem e recordarem alguns dos melhores momentos que viveram na infância, experiências significativas, impactantes e positivas: “Quais são? É muito provável que tenham sido com amigos e sem adultos por perto, certo?”, questiona.
Tendo em consideração a vossa experiência, quais são os melhores ambientes para promover brincadeiras livres?
Mariana Costa - Por cá, as crianças brincam na maioria dos espaços. Em todos eles encontram elementos que podem ser várias coisas. Acho que poderíamos repensar os espaços. Em ambos os bairros onde se desenvolve a nossa intervenção, as crianças não têm um espaço exterior para brincar. Vão adaptando ao que é possível no contexto. Hoje, por exemplo, as crianças e jovens passaram o dia no rio. É maravilhoso ver as brincadeiras ao longo do dia e todas e todos a dormir no autocarro, na viagem de regresso. O dia foi bom. As crianças precisam de contacto, de viver em comunidade e essa é uma das nossas prioridades.
Virgínia Martins - Idealmente, os melhores ambientes para promover brincadeiras livres são aqueles que oferecem segurança, estímulos diversos e oportunidades para a interação social. Mas não há soluções perfeitas e se queremos tornar a brincadeira uma rotina, teremos de nos adaptar e ser flexíveis. Pode brincar-se nas situações quotidianas, com palavras, com histórias, com pedrinhas, com paus, com música, com o nosso corpo. Pode brincar-se acompanhado e até sozinho. Quando o espaço exterior não é uma possibilidade, ajuda flexibilizarmos o espaço interior. Permitir mudanças, desorganização e desarrumação, faz parte da brincadeira. As regras rígidas e constantes alertas “matam” a brincadeira livre. Pode ser uma excelente oportunidade pra, no final, estimular a colaboração na reorganização e limpeza dos espaços.
Os pais das crianças com quem trabalham lidam com preocupação de ocupar os filhos nos períodos de férias escolares? Como é que os pais e os educadores podem criar e incentivar ambientes que promovam as brincadeiras livres?
Mariana Costa - No contexto em que vivemos, penso que as famílias estão preocupadas com a ocupação nos períodos de férias escolares, sim. Vivemos numa sociedade que perpetua trabalhos precários e assiste-se à falta de tempo de lazer e de ócio. As nossas famílias estão em situações muito difíceis, são realidades com problemas vários. Precisamos de ir à raíz do problema e essa raíz carrega problemas estruturais e sistémicos, o que torna tudo ainda mais difícil porque estas realidades cruzam-se entre múltiplos fatores. É essa a nossa retaguarda, a possibilidade de sermos uma resposta (das tantas que precisam) para as nossas famílias. E é esta a nossa luta, criar um espaço de liberdade, igualdade e de prevenção da violência e da discriminação. Esta luta é possível em comunidade, em coletivo.
Virgínia Martins - Acontece que a brincadeira livre, não estruturada, sem monitorização, é mais assustadora para nós pais, nós professores e nós assistentes operacionais, que, na eventualidade de algo correr mal, podemos ser responsabilizados. Acontece que quando resta algum tempo para brincar, pode surgir a preocupação com o bem-estar físico, que leva à supervisão constante e alertas constantes para o risco das brincadeiras, disto e daquilo, transformando uma atividade prazerosa numa atividade aborrecida para a criança. Pelo que temos muito que trabalhar esta dimensão da confiança em nós adultos.
Também têm que lidar com o desafio de afastar as crianças dos ecrãs? Qual é o impacto e de que forma se deve integrar a tecnologia de forma a complementar as brincadeiras livres?
Mariana Costa - Sim, lidamos diariamente e é uma questão complexa. Mais recentemente temos utilizado algumas estratégias que potenciam uma maior socialização entre pares, afastada de ecrãs e tem resultado. Tentamos que os nossos encontros, brincadeiras e momentos de reflexão sejam longe de ecrãs. Temos trabalhado para dar espaço a momentos com e sem ecrãs. É um equilíbrio, também estamos a aprender a gerir este desafio.
Virgínia Martins - A tecnologia não tem de ser vista como a vilã, até porque também traz impactos negativos. Pensando na forma como pode ser integrada na brincadeira livre, talvez a palavra-chave seja o equilibro. Para além do estabelecimento de limites de tempo para o seu uso e para o conteúdo, pode ser usada para interações sociais (como jogos em grupo com os amigos, videochamadas..), pode ser incorporada em atividades físicas (dança...), para filmar as brincadeiras... Dependendo da forma como é usada, combinar tecnologia com brincadeiras livres, pode potenciar aprendizagem, diversão e desenvolvimento social.