O uso de telemóveis por crianças a partir dos 10 anos é um tema bastante debatido entre pais, educadores e especialistas em desenvolvimento infantil. Mas a questão de permitir ou não que uma criança tenha o seu próprio telemóvel envolve várias considerações importantes. O programa “Guimarães, Cidade Amiga das Crianças” foi tentar perceber como é que os pais lidam com esta situação, incluindo os aspetos de segurança, saúde, desenvolvimento social e emocional associados.
Nilza Cunha é mãe da Margarida de 11 anos e do Lourenço de 5 anos. E na histórica que conta sobre a decisão de dar à filha o primeiro telemóvel nesta idade, muitos outros pais, provavelmente, se reveem: “Com muita insistência por parte dela, porque todos os amigos mais chegados e coleguinhas da escola já tinham telemóvel, menos ela e sempre que chegava a casa reclamava”, descreve. “Então acabamos por ceder e demos um bocadinho mais cedo do que tínhamos pensado”, admite.
Foi à procura de garantir a sensação de segurança e conexão que Nilza Cunha e o marido decidiram dar à Margarida o primeiro telemóvel quando, no verão, foi passar uns dias fora com os restantes colegas do centro de estudos que frequentava. “O pai achou por bem darmos-lhe um telemóvel para ela se sentir mais segura, porque é uma menina mais insegura, e sempre que ela precisasse ligar com a mãe ou pai para estar à vontade”, lembra Nilza Cunha admitindo que foi a maneira que arranjou de a convencer a ir. “Ela nunca dormiu fora de casa, foi a primeira vez, e acabamos por ceder a isso”, contextualiza.
Liliana Ferreira é educadora parental e socioemocional na Emoções à Flor da Mente e mãe da Bia que, com 11 anos, “é a única, na turma, que não tem um telemóvel” e na escola “talvez seja a única ou das únicas”. “A pressão que ela sente é gigante”, revela Liliana Ferreira. “Não só dos colegas mas também quando os próprios professores pedem que usem o telemóvel para alguns trabalhos em sala de aula”, continua, dando nota que, em nenhum momento, a escola indicou o telemóvel como material necessário para as aulas. “Nós, apesar da convicção desta ser a melhor opção quando sabemos da importância de a afastar tanto quanto possível dos ecrãs e mundo online, sentimos igualmente uma forte pressão”, acrescenta.
A alternativa encontrada por esta educadora parental para manter a comunicação com a filha, especialmente em situações de emergência ou quando ela está fora de casa, foi um relógio que permite fazer e receber chamadas de 10 contactos definidos e mandar e receber mensagens dos pais. “Tira fotografias que ficam apenas disponíveis no relógio e na APP a que apenas nós temos acesso. Tem localizador, histórico de percursos e botão SOS”, descreve a mãe da Bia.
Se no início a Margarida usava o tablet para ver, essencialmente, Youtube, agora que tem telemóvel já pediu uma conta no Instagram porque “todas as amigas tinham e estava toda a gente a dar-lhe os parabéns no Instagram e ela não conseguia ver as publicações”. “Pensamos um bocado sobre isso e acabamos por aceder. “Ela percebeu que apenas poderia ver publicações, que não poderia publicar nunca nada pessoal, não poderia aceitar todos os pedidos e mais alguns e eu acabo por ter acesso à conta e vou sempre gerindo”, descreve Nilza Cunha.
Por sua vez, a Bia, quando necessário, em casa pode aceder a um telemóvel que não tem cartão mas tem uma série de apps limitadas e para conversar e participar em conversas de WhatsApp da escola usa o telemóvel da mãe. “Faço de uma espécie de assistente que não abre correspondência mas a informa quando tem mensagens para ver”, explica Liliana Ferreira.
Se, por um lado, o uso responsável de telemóveis pode ajudar as crianças a desenvolver habilidades sociais, como comunicação e colaboração, através de aplicativos de mensagens e redes sociais, por outro, o uso excessivo de telemóveis pode substituir as interações pessoais e afetar negativamente o desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais das crianças. “Às vezes a Bia sente-se excluída. Gostava de brincar mais com os amigos mas por norma estão agarrados ao telemóvel”, comenta a mãe. “Também gostava de perceber dos jogos de que eles falam, das músicas, das danças e das trends, das influencers, de piadas e skincare”, enumera Liliana Ferreira. “Já lhe disseram que não teve infância por não ter acesso a este género de conteúdos e equipamentos liberalizada”, revela.
Os telemóveis também podem ser utilizados como ferramentas educativas, proporcionando acesso a recursos educacionais e informações úteis, no entanto o acesso livre à internet e a interação com desconhecidos podem expor as crianças a riscos de segurança, como cyberbullying, predadores online e conteúdo inadequado.
O João (nome fictício) tem 10 anos e tinha que fazer o download da aplicação interativa Action Bound no telemóvel, para participar numa atividade da escola. Ligou à mãe a explicar para que servia a aplicação e para estar atenta e autorizar a instalação da app. Foi o único desta turma de 24 crianças que o fez. Todos os restantes rapazes e raparigas conseguiram instalar a aplicação sem qualquer supervisão parental.
Também Nilza Cunha e o marido exercem este controlo parental e sempre que a Margarida pretenda ter alguma aplicação ou algum jogo que viu no telemóvel de outro amiguinho o pai recebe sempre as notificações no telemóvel dele. “Só quando o pai aceita ou ela liga, ou dá um toque ao pai ‘Oh pai olha quero este jogo, podes-me aceitar?’, ele pergunta que jogo é e tal, vê que é um joguinho e deixa”, explica a mãe.
Qualquer pessoa está sujeita aos muitos perigos à espreita na internet e redes sociais, como é o caso do discurso de ódio, grooming, sextortion, roubo de identidade ou burlas online, e as crianças não são exceção. Através do “Guia para uma internet segura”, disponível AQUI é possível estar melhor preparado para gerir de forma consciente as consequências negativas do uso das tecnologias e a utilização da internet de forma responsável, crítica e saudável.
“Nunca tive assim nenhuma situação difícil de gerir e como não é uma menina rebelde acaba por acatar tudo o que o pai e a mãe dizem, ainda que com a idade isto vá piorando. Se eu digo que não aceitas ninguém sem eu te dizer e quando vamos de férias não se publica nada onde estamos. A única coisa que ela publica são as fotos do Futebol Clube do Porto, porque é portista e publica tudo o que é do Porto”.
O telemóvel próprio, ainda assim, pode ajudar a criança a desenvolver um senso de responsabilidade, aprender a gerir o seu tempo e a tomar decisões apropriadas sobre o uso do dispositivo. “Durante as aulas a Margarida entrega o telemóvel numa caixa e só tem o telemóvel de volta quando acabam as aulas”, refere a mãe. O centro de estudos que a Margarida frequenta fica perto da escola e ela sempre que atravessa a rua chega ao centro manda uma mensagem a dizer: “‘Estou no centro mãe, fica descansada’ e a seguir volta a desligar e só volta a ligar novamente quando sai”, descreve Nilza Cunha.
No entanto, como o uso frequente de telemóveis pode distrair as crianças e interferir no seu desempenho académico, prejudicando a concentração e a capacidade de aprendizagem, as escolas começam a tomar medidas sobre esta matéria. O Conselho das Escolas, um órgão consultivo do Governo, numa notícia avançada pela Lusa em outubro de 2023, considerou que a resposta aos impactos negativos do uso dos telemóveis em contexto escolar não passa apenas pela respetiva proibição. Por sua vez, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) recomenda que a utilização de telemóveis nas escolas seja, exclusivamente, limitada às atividades curriculares mas caso a integração dos mesmos não beneficie a aprendizagem ou perturbe o funcionamento das aulas, deve mesmo ser proibida. O relatório anual de monitorização da educação desta entidade associa a utilização excessiva de smartphones a um pior desempenho académico e a impactos negativos no bem-estar físico e mental de crianças e jovens. Além disso, chama à atenção para o risco do cyberbullying, muitas vezes alimentado por imagens captadas na escola. Alguns países já começaram a agir. A organização estima que um em cada seis países esteja a banir os telemóveis das escolas. Em Portugal, têm sido os agrupamentos a decidir o que fazer.
“É muito difícil na sociedade e contextos atuais estabelecermos e mantermos estes limites. Mas estamos conscientes da importância que têm para o seu crescimento e disso não abrimos mão”. Liliana Ferreira
O uso excessivo de telemóveis pode contribuir também para problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e isolamento social. “Vimos com a Bia a reportagem Agarrados aos Ecrãs, da Sic”, começa por dizer Liliana Ferreira. “Falamos sobre as nossas opções e já nos dispusemos a chegar a um acordo que respeite os limites do que consideramos saudável”, acrescenta garantindo que ela e o pai procuram sempre “não dar sermões”. “Optamos por lhe fazer perguntas e estimular o seu pensamento crítico”, esclarece. “Por norma acaba por compreender a nossa posição, embora fique triste com as limitações que tantos parecem não ter”, conclui a educadora parental e socioemocional na Emoções à Flor da Mente.