É também esposa, mãe, avó, investigadora e vimaranense. Beatriz Pereira há mais de cinco décadas desafiou, sem grandes alaridos, o percurso destinado às mulheres e tem vindo a desafiar-se ao longo da vida. O mais recente desafio que aceitou – presidir o Instituto da Educação (IE) da Universidade do Minho - motivou esta entrevista ao programa Guimarães, Cidade Amiga das Crianças, mas só em jeito de “lembrete”. O percurso profissional desta professora catedrática tem sido há muito dedicado ao universo das crianças enquanto investigadora do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) do IE, como diretora do doutoramento e do mestrado em Estudos da Criança mas também em muitas outras dimensões, nomeadamente, enquanto mãe e avó.
O currículo é extenso, no entanto a simplicidade que a caracteriza reflete-se na maneira como se apresenta: “Sou professora de ensino superior há muitos anos, mas sou uma pessoa que viveu e teve experiência de trabalhar em escolas básicas e em escolas secundárias, em todo o norte do país. Sou fundamentalmente professora e é com muito orgulho que o digo”.
O gosto pelas coisas simples e da vida ao ar livre não parecem compatíveis com o grau de exigência do cargo que ocupa desde setembro deste ano. “Gosto, de facto, da simplicidade da vida, porque é isso que nos traz maior alegria e também tem a ver comigo esse lado da simplicidade e de fazer aquilo que entendo, sem estar preocupada, digamos, com alguma imagem, porque cada um de nós tem que viver no seu próprio espaço, de uma maneira que se sinta confortável e é assim que eu me sinto confortável.
Fala de simplicidade mas o trabalho de Beatriz Pereira deve ter tudo menos essa característica: ”Tem de facto muita exigência em termos de representação”, admite, ainda que aceite com naturalidade as responsabilidades que o cargo acarreta em termos de exposição pública. “Este contacto com a exposição também não me é desagradável”, revela. “Houve outros períodos em que, eventualmente, seria mais estimulante essa exposição social. Neste momento, o que me move é, muito mais, o sentido de missão, no sentido de ser útil, de poder contribuir para o bem-estar das pessoas com quem trabalho, com quem vivo”, continua.
A ideia é dar continuidade ao trabalho feito e Beatriz Pereira toma posse com a convicção de que “o trabalho estava no caminho certo”. Agora assume a responsabilidade de limar algumas arestas, de resolver situações de perda de tempo em documentação e de olhar com atenção para os cursos de mestrado. “É um cruzar de olhares que vai exigir concentração para ver qual é o caminho até porque estamos num período de alguma contenção orçamental e, portanto, temos que tentar responder em termos de número de alunos, em termos de diversidade de oferta mas também temos que saber viver com algumas restrições”, analisa a presidente do IE. “É um desafio e vai ser necessário ser muito criativo para poder encontrar aqui caminhos, mas a Universidade do Minho é uma grande universidade e temos condições para superar essas dificuldades”, garante.
“Sempre me considerei uma aprendiz ao longo da vida e neste momento também sou uma aprendiz” Beatriz Pereira
Estudar para Beatriz Pereira foi sinónimo de independência e fê-lo, inclusivamente, para poder viajar e porque achava importante ter essa autonomia desde muito cedo. “Para viajar tinha que ter o meu próprio dinheiro ou não poderia viajar. E de facto viajei muito, viajei de interrail pelos vários países da Europa e em períodos sucessivos: Grécia, o norte da Europa, o centro da Europa”, enumera. A primeira vez que viajou nesta perspetiva de conhecer e de desafiar os limites das fronteiras de Portugal tinha 16 anos. “Estive a trabalhar num campo em Inglaterra, a apanhar frutos e cebolas. Estive com jovens de todo o mundo, foi o meu primeiro mês internacional aos 16 anos, uma coisa incrível”, lembra. “Naquele campo de trabalho estavam vários portugueses, uns 12 homens mas raparigas não. Era uma situação muito rara e tão jovem como eu, estava fora de questão”, constata.
O “espírito muito aberto” deve-o à mãe que sempre apoiou as filhas e defendeu para elas a mesma liberdade de escolha que os filhos homens tinham à época. “Não é por acaso que tenho uma irmã mais velha que é engenheira, que era também outra coisa, completamente, fora da caixa naquele tempo. A minha mãe, claramente, era uma pessoa diferente e muito aberta e muito voltada para uma educação que desenvolvesse competências. Ela própria também já foi bastante à frente do tempo”, atira.
E essa influência nota-se no trabalho e naquilo que Beatriz Pereira passa aos alunos. É uma defensora da importância da autonomia, do desenvolvimento de competências e da internacionalização. “A experiência de estar três meses, quatro meses, seis meses num país fora é uma oportunidade única. A Europa não gasta dinheiro em coisas que não sejam absolutamente necessárias e relevantes para o desenvolvimento das pessoas e para a melhor interação entre as pessoas entre todos os países da Europa”, remata.
Foi durante a tomada de posse de um núcleo de estudantes, que a professora catedrática defendeu esta posição para uma plateia constituída, maioritariamente, por mulheres que frequentavam o curso de educação básica. Da presença neste evento realçou uma preocupação que tem tido oportunidade de observar: “Mesmo em cursos com maioria de mulheres, depois encontramos nos órgãos de gestão dos próprios estudantes os rapazes, quando temos um ou dois rapazes naquele grupo. E isso acho que é manter um perfil conservador. Gosto que as mulheres tenham consciência de que elas podem exercer os cargos e que devem exercer dentro da direção, a presidência”. A investigadora defende este empoderamento das mulheres, mas não deixa de reconhecer que “os cargos de gestão sejam bastante mais difíceis para a mulher do que para o homem porque arcam sempre também com várias responsabilidades em casa, acumulam tarefas”.
O Instituto de Educação preocupa-se em fomentar a igualdade de género, não fosse a atual diretora uma mulher que sentiu na pele as dificuldades de o ser: “Recordo-me de ter dado aulas aqui na Escola Secundária Martins Sarmento e ser diretora de uma turma e ter, por exemplo, um professor que só porque era mulher, as coisas já não iriam correr bem. E algumas dificuldades foram lançadas só porque eu era mulher e uma miúda e ele era conservador e bastante mais velho. Lá está uma primeira dificuldade, entre muitas outras que encontrei, que claramente a questão era o género”, admite.
Das questões de género a conversa deu um salto para a infância e, em jeito de quem se lembra de tempos idos, Beatriz Pereira recorda que só recentemente, nos últimos 20 anos, a criança passou a ser ouvida. “Ela antes era ouvida através dos pais, através dos professores. E hoje não. Nós valorizamos muito a voz da criança porque ela sabe bem o que pretende e também nos ajuda a compreender melhor o seu mundo e por onde quer caminhar e nós temos que saber ouvir”, frisa.
E nesta matéria o Instituto de Educação da Universidade do Minho dá cartas, quer na investigação que promove, quer, por exemplo, na recente publicação lançada pelo Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) por ocasião do 1.º Congresso Internacional de Estudos da Criança, que decorreu em Braga, em setembro.
“Child Studies” é o nome da primeira revista científica portuguesa dedicada aos Estudos da Criança, está disponível online, tem uma abrangência internacional e aborda tópicos como os direitos das crianças, o seu desenvolvimento e bem-estar, as relações intergeracionais ou outros aspetos sociais, políticos e culturais que impactam as realidades das crianças.
Quando a conversa recai sobre a cidade que a viu nascer, Beatriz Pereira diz que “em Guimarães a educação tem sido muito valorizada”. “Tem sido feito um trabalho incrível e um caminho percorrido de acordo com aquilo que são as indicações da investigação e, portanto, o caminho certo”, avalia. Realça o salto qualitativo e os projetos desenvolvidos projetos ligados às crianças, à educação e à desigualdade social. “Não são projetos avulso e Guimarães evoluiu imenso e felizmente, hoje é bom ver o nível cultural e o nível educacional da população que subiu imenso. E sem dúvida que tenho que dar os parabéns à vice-presidente e ao presidente da Câmara porque também temos que reconhecer que eles têm feito muito pela cidade”, elogia.
“Cada vez temos mais consciência da necessidade de trabalhar com as crianças, de as deixar desenvolver e, portanto, dar-lhes a oportunidade de poderem brincar livremente, que é algo, extraordinariamente, importante. As crianças têm que aprender a estar na natureza para aprenderem a observar, desfrutar de poder ter contacto com a terra, com a areia, com as folhas, com os arbustos, ver as mudanças que ocorrem ao longo dos períodos do ano, as estações são muito importantes a queda das folhas…” Beatriz Pereira
A escola tem também evoluído nesta perspetiva nestas últimas décadas. Beatriz Pereira avalia que “as coisas melhoraram muito”. “Nós sabemos que há 35 anos não havia educadores de infância, as pessoas estavam com as crianças mas o conhecimento era muito mais limitado”, recorda.
É de facto um avanço gigantesco, isto era impensável: universal, direitos para todos. Nós sabemos que dos zero aos seis anos é o período fundamental do desenvolvimento da criança, quer do ponto de vista cognitivo, emocional e motor. E estas crianças não tinham acesso à educação porque há 30 anos os infantários eram raríssimos e não eram para todos. Hoje as crianças têm acesso a estar apoiadas no seu desenvolvimento desde os seis meses”, aponta.
“O pré-escolar é absolutamente necessário porque é o primeiro de socialização em que aprendem as regras, uma fase de aprendizagem da linguagem. E agora, com a possibilidade das crianças terem acesso gratuito desde que nascem vai permitir diminuir as desigualdades entre as crianças”. Beatriz Pereira
Beatriz Pereira frequentou o jardim-de-infância e garante que era “completamente fora do comum” e que na respetiva infância contavam-se pelos dedos as pessoas que o fizeram. “Foi no [Colégio] Nossa Senhora da Conceição, em Guimarães, e ainda hoje me lembro de um espaço bem agradável, com mesas onde tínhamos vários objetos para poder brincar, mas também com muito espaço exterior, onde também realizávamos muitas brincadeiras”, recorda.
E para quem se licenciou em Educação Física, falar de brincadeiras ao ar-livre é falar de desenvolvimento motor e é falar de atividade física: “Sem dúvida, a motricidade é essencial para a conquista do espaço”, resume quando se refere à importância de ampliar o espaço de convivência das crianças e permitir-lhes desfrutar dos espaços exteriores. “Até porque vivemos num país com um clima muito ameno e as crianças devem estar o máximo de tempo possível no exterior”. A referência aos países nórdicos é inevitável e chega mesmo a enumerar países como Dinamarca, Suécia, Noruega que permitem que “as crianças desde idades muito baixas no pré-escolar” passem “dias completos, praticamente, no exterior”. “E o espaço interior é reservado para pequenos momentos durante o dia, porque com a natureza, aprende-se muito mais. Ao ar livre há muitos mais imprevistos, muitas mais soluções que eu tenho que procurar e não queremos formatar crianças, queremos crianças que procurem soluções a cada momento”, analisa.
Beatriz Pereira defende que as bases da educação física têm que ser todas lançadas no período de infância para estimular “o gosto pela atividade física” e depois ao longo de toda a escolaridade. Por isso, hoje é obrigatório ter educação física até ao 12.º ano e, mesmo assim, temos uma juventude e já crianças muito sedentárias e com elevados níveis de obesidade que é um problema sério e grave.
“As crianças que recorrem ao médico para tratar questões de obesidade já são imensas e isto poderia ser prevenido, de uma maneira geral, não é só com a educação física, mas com este criar o gosto pelo corpo, pelo mexer-se, estilos de vida saudáveis e também, claro que é preciso juntar a alimentação regrada e adequada”, considera.
A investigação que tem vindo a desenvolver tem-se focado nestas áreas do desenvolvimento motor e da atividade física. No mestrado centrou-se no estudo dos tempos livres da criança e o facto de ter analisado o comportamento das crianças no recreio fez-lhe despertar para as questões do bullying na escola “Foi um dos meus grandes investimentos. Foi o primeiro estudo em Portugal sobre bullying”, destaca. Na altura a Fundação para a Ciência e Tecnologia não autorizou que, o livro publicado, tivesse no título a palavra bullying. “Tive que alterar”, lembra. “Para uma escola sem violência”, é o resultado destes primeiros passos a estudar este fenómeno na tese de doutoramento defendida em 1998.
“[O bullying] sempre existiu. Mas as escolas há alguns anos atrás não eram para todos, eram extremamente seletivas. Não havia tão pouco consciência [desse fenómeno] porque a preocupação era que as crianças tivessem acesso à escola. Há 40 anos atrás o problema era meter as crianças todas nas escolas e ninguém se andava a preocupar com isso”. Beatriz Pereira
A investigadora diz que é preciso que toda a comunidade escolar esteja atenta às questões do bullying para se detectar estas situações mais cedo, e assim se encaminhar as crianças para um acompanhamento por psicólogos ou por um pediatra e, portanto, também podemos ainda ajudar a que estas crianças sejam felizes.
“O meu filho mais novo foi para a escola demasiado cedo, aos cinco anos, e depois entrou também mais cedo, aos nove anos, no quinto ano”, começa por explicar Beatriz Pereira. “E uma das minhas preocupações nunca foi saber que notas é que ele tinha, nem ia à escola por causa das notas. A minha preocupação é o que é que se passaria nos recreios, exatamente, porque ele era mais novo que os outros e eu sabia que haveria mais condições, por exemplo, para ser vítima do que a minha filha que tinha outra maneira de estar”, exemplifica.
O equilíbrio entre o papel da profissional e a vida pessoal, em particular, o papel de mãe foi-se misturando. Mas agora o futuro da academia e o futuro dos netos de Beatriz Pereira estão alinhados lado a lado. É, enquanto avó, que ao avaliar o papel da escola, considera que uma das missões é não deixar que as crianças tenham qualquer TPC para casa. “Os momentos em casa são para elas estarem com os pais”.
A faceta de avó ganhou outro peso: “Hesitei muito antes de aceitar a presidência do Instituto porque o ser avó é a melhor coisa que há no mundo. Neste momento reconheço que não é muito fácil gerir dois papéis tão intensos. Não é muito simples porque a exigência em termos de tempo e dedicação, quer a um quer a outro é muito grande”, admite. “Vou voltar a aprender a conciliar os dois papéis, porque acho que as crianças crescem e não voltam para trás e não posso perder esta fase do seu desenvolvimento, que é uma fase maravilhosa e que tenho muito gosto de poder estar por perto e acompanhar”, completa.
É tranquila com os netos, acha que é muito importante dar-lhes tempo, falar baixo, conversar muito e passear. "Ir apanhar um fruto a uma árvore em casa, as pequenas tarefas do dia-a-dia são partilhadas e as brincadeiras também. Aquelas brincadeiras simples são momentos de grande alegria”, termina como começou, a atestar que é uma pessoa simples e que gosta da simplicidade da vida.
* Foto: www.dicas.sas.uminho.pt/big/academia/2022/tomada-de-posse-da-presidencia-do-ie